Relativismo #3

3. Mais uma dificuldade se apresenta se perguntarmos ao adepto de R(a), qual o critério usado para distinguir a justificação e validade de Y em diferentes situações. Isto é, desejamos saber se existe um método (por assim dizer) que permita distinguir as razões pelas quais Y não é valido em S11 ou outra situação qualquer. Esta questão, apesar de ter aparência de uma questão menor, na verdade solicita ao adepto de R(a) que ofereça mais um critério para o uso que faz de diferentes critérios em diferentes situações e como distingue um critério do outro. Obviamente que o adepto de R(a) pode simplesmente ignorar estas questões e afirmar que sua adesão a R(a) se deve justamente ao fato de não possuir critérios que lhe permitam determinar a verdade ou falsidade de A em diferentes situações. Contudo, a falta de critérios não parece ser uma boa justificação para dotar as teses de R(a) e sim para não adotar nenhuma. Isto contudo, tornaria a posição do adepto de R(a) insustentável. Ele não poderia argumentar contra outras posições filosóficas, uma vez que não possui critério algum para afirmar que estas outras posições filosóficas são insustentáveis e seria tratado como uma pessoa que meramente alega que existem diferentes critérios de verdade e que se sente desconfortável com tal fato. Mas, contudo, para tanto oa depto de R(a) deveria fornecer o seu critério para distinguir diferentes critérios. Por certo que a maioria dos adeptos de R(a) se nega a admitir que não tenha critérios para distinguir diferentes critérios de verdade em outras teses acadêmicas. No entanto, ao oferecer seu critério ele seria novamente solapado de sua sua posição, uma vez que não possuir critérios válidos únicos para as afirmações que visam a verdade, é o ponto de partida para R(a). Com isto quero afirmar que a adesão a R(a) se fundamenta apenas em uma adesão à uma tese que expressa a revolta acadêmica, mas não a uma tese que se deva considerar como “bem fundamentada”.

Relativismo #2

2. Temos então duas características de R(a): a primeira implica que para toda proposição que vise ser uma afirmação de verdade, ela deve corresponder ao critério Y de verdade. Ou falhar diante deste critério. A segunda caraterística implica que Y, apesar de ser o critério para toda afirmação que vise ser verdadeira, não possui justificativa para todas as situações possíveis. Isto lança R(a) numa profunda contradição e não contrariedade. Se o critério de verdade e falsidade, não é própria afirmação que visa ser verdadeira e sim alguma outra estrutura (por assim dizer), então acredita-se que esta outra estrutura deva ter alguma justificação. Contudo, para manter-se no credo de R(a), Y pode ser justificado em relação a outra estrutura. Consideramos que Y serve de critério e pode ser justificado em algumas situações, mas não em todas. Se assim não fosse R(a) estaria admitindo uma crença contrária a si mesmo. Contudo, para se manter um “fiel” de R(a) é necessário argumentar que não importa tanto se Y é válido para todas as situações e sim, basta que Y seja válido em uma determinada situação e não em todas. No entanto, a validade de Y numa situação implica que, por exemplo, em S3 Y serviu como critério da verdade de uma dada afirmação (também poderia servir para a falsidade da mesma) e que, segundo este raciocínio, naquela situação S3 o critério Y deveria ser aceito (ainda que o adepto de R(a) afirme que deve ser aceito apenas nesta situação) e, com isto, Y em S3 era válido por ser relativo a S3. Ora, mas isto nos leva a perguntar o que em S3 torna o critério Y válido e justificado e por qual razão isto não ocorre em toda as situações. Certamente que a resposta do adepto de R(a) será afirmar que as situações mudam e, com isto, a validade e justificação de Y também deve mudar. Assim, é perfeitamente aceitável para o adepto de R(a) que as mudanças de situação orientem a validade de Y e, com isto, a verdade e/ou falsidade da afirmação A. Contudo, o que torna a situação S3 especial que permite a justificação e validade de Y? O que faltaria numa situação diferente, S13 por exemplo, para que Y perdesse seu status de critério? Ora, parece que a resposta deveria ser: S3 possui especificações e qualificações que a tornam sui generis em relação a outras situações e, portanto, é devido a isto que Y é um critério válido e justificado em S3, mas não em S13 uma vez que esta situação é diferente e possui especificações e qualificações diferentes de S3. Ou seja, o adepto de R(a) teria de alegar as possíveis diferenças entre as situações. Mas isto, por sua vez, não parece ser um argumento novo se considerarmos que um não adepto de R(a) afirmaria o mesmo para obter resultados diferentes. O adepto de R(a) teria de construir um novo critério para a ligação entre “critérios válidos e justificados em S3” e “critérios válidos e justificados em S13” e assim por diante. Ou seja, o adepto de R(a) teria de fornecer novos critérios para a validade e justificação de critérios.

 

Relativismo #1

0. É muito comum que na academia de filosofia o primeiro ponto de vista defendido “reza” que todas as afirmações que visam a verdade, devem passar pelo teste do “olhar” relativista. Este olhar relativista, crê que a pretensão de verdade de qualquer afirmação é dependente de uma visão de mundo particular (ocidental, grega, nacional, oriental, etc.); é dependente de uma estrutura cognitiva (se nossa mente fosse estruturada de outra forma, veríamos o mundo de outra forma) estabelecida; é dependente de uma estrutura linguísitica (diferentes povos, por falarem diferentes línguas, possuem formas gramaticais diferentes de fazer a mesma afirmação); é dependente da estrutura perceptiva adequada ao ser humano e, neste caso, o que se percebe é, na verdade, algo dependente da forma de perceber. Em suma, o ponto de vista relativista na academia possui contrargumentos para quase todos os tipos de afirmações filosóficas. Se impôe, então, que este mesmo ponto de vista, ao conviver com outros pontos de vista acadêmicos e, ao mesmo tempo, acreditar ser o único ponto de vista que fornece alguma verdade (do contrário não seria defendido de forma quase religiosa), que o mesmo seja compreeendido e questionado. Mais ainda, o ponto de vista relativista na academia deve ser visto como uma espécie de “revolta” contra as afirmações de verdade. Considere-se que este tipo de relativismo não impera na vida ordinária, sendo esquecido nas tarefas ordinárias, mas paradoxalmente é defendido dentro da academia. É plausível ser relativista quanto a possibilidade de uma busca de analise do significado, mas não é plausível ser relativista quanto à horários de ônibus ou à quantidade de açúcar no café, por exemplo. Por academia entendo aqui as relações dentro da universidade que dizem respeito à discussão sobre problemas filosóficos ou teorias sociais. Será necessário, então, classificar dois tipos de relativismo: R(a), um relativismo acadêmico que se tornou uma espécie de “credo” entre estudantes de ciências humanas e o R(o) relativismo ordinário, que na verdade visa uma espécie de bem estar ou de convívio pacífico entre as pessoas. Ambos apresentam perigos intelectuais, mas apenas R(a) possui pretensões de verdade e, pode-se dizer, pretensões epistemológicas. Quanto a R(o) seu objetivo é a convivência pacífica com pessoas diferentes entre si e, nest caso, não se constitui numa defesa da ausência de critérios de avaliação. Considerando esta distinção, meu objetivo é tratar do Relativismo Acadêmico, ou simplesmente R(a).

1. Normalmente um adepto de R(a) sente-se impelido à questionar a possibilidade de que uma afirmação com pretensões de verdade possa se estabelecer como verdadeira. O adepto de R(a) considera que existem várias formas de estabelecer a verdade da afirmação e que para cada possibilidade de confirmação temos uma estrutura que é relativa a algo, e isto, por sua vez torna a afirmação verdadeira ou falsa  apenas em consideração ao que é relativo (isto é, aquilo com o qual está em relação). Consideremos que este “algo” que pode tornar uma afirmação com pretensão de verdade, verdadeira, seja denominado Y. Assim, uma afirmação A com pretensões de verdade será verdadeira em comparação com Y e este será o fundamento de sua verdade. Se Y , por exemplo, se constitui nas estruturas de nossa percepção e se a a firmação com pretensão de verdade diz respeito a nossa percepção, então a mesma terá como critério de verdade tudo que diz respeito à Y e nada mais.  Contudo, por mais intuitivo que isto possa ser, Y não possui nenhum critério de justificativa que o garanta como único. Assim, se a afirmação for verdadeira, o será com relação à Y e este, por sua vez, pode não ser da mesma forma para diferentes pessoas. Ou seja, tanto  a verdade quanto a falsidade da afirmação depende de Y, mas Y não pode ser defendido de forma absoluta. O que torna tudo isto mais complicado é que se Y não pode ser defendido como critério único de verdade ou falsidade para qualquer afirmação que visa a verdade, então, por qual razão Y deve ser um critério? Ora, se Y pode ser defendido, mesmo em termos de sua possível veracidade localizada – isto é, válido apenas para a situação S1, S2, S3,…S10, mas não para S11, S12, S13,….S20 –  esta defesa terá valor de justificativa apenas para aquela situação específica. No caso de nosso exemplo de situações, devemos considerar – e todo defensor de R(a), se consciente, também o deveria – que a afirmação A é verdadeira ou falsa em relação à Y na situação S3, mas pode não servir de justificação para a mesma afirmação A, numa situação S12. Portanto, Y ainda que seja um critério de justificação para a afirmação A numa situação S3, poderá não servir de critério de justificação para uma afirmação do tipo A em outra situação, isto é, Y pode não ser mais um critério de justificação. Ora, isto nos conduz diretamente a busca de uma explicação sobre como Y pode servir em S3 e “não servir” como justificativa em S12, por exemplo.

Wittgenstein: Filosofia e Ciência – Por Ray Monk #3

Mas a evidência sobre a qual este julgamento especializado quanto às pessoas é uma evidência imponderável, que resite a formulação de características gerais da ciência. A evidência imponderável, diz Wittgenstein, inclui as sutilezas do olhar, do gesto de tom. Eu posso reconhecer um legítimo olhar de amor e distingui-lo de um que apenas finge amor (…) mas serei incapaz de definir as diferenças. Se eu fosse um pintor talentoso eu poderia, concebivelmente, desenhar o olhar genuíno e o olhar que finge amor e apresentá-los em pinturas.
Contudo, o fato de que estamos lidando com evidências imponderáveis não deve nos enganar e levar-nos a crer que quando compreendemos pessoas nossas descrições são espúrias. Quando estava discutindo sua obra literária favorita, Irmãos Karamazov, com Maurice Drury, Drury disse que para ele o caráter de do Pai Zossima era impressivo. De Zossima, Dostoiewsky escreve “Foi dito que (..) ele tinha absorvido tantos segredos, tristezas, e relatos em sua alma que ao fim adquiriu uma percepção tão refinada que poderia dizer num primeiro olhar da face de um estrangeiro de onde ele vinha, o que desejava e com que tipo de tormento afligia sua mente. Sim, disse Wittgenstein, existiram pessoas como esta que podia ver diretamente a alma de outra pessoa e lhes aconselhar.
“Um processo interno necessita de um critério externo” é um dos aforismos mais citados das Investigações Filosóficas. Entende-se pouco, por outro lado, a ênfase que Wittgenstein colocava na necessidade de uma percepção sensível a estes “critérios externos” em toda a sua imponderabilidade. E onde se encontra esta sensibilidade? Não, de maneira típica nas obras dos psicólogos, mas naquelas dos grandes artistas, músicos e novelistas. As pessoas de hoje, escreveu Wittgenstein em Culture and Value, pensam que os cientistas existem para lhes instruir, poetas, músicos para lhes dar prazer. A ideia de que estes últimos às podem instruir não lhes ocorre.
Num tempo como este quando as humanidades estão institucionalmente obrigadas a tentar serem ciências necessitamos mais do que nunca das lições sobre compreensão que Wittgenstein – e as artes – tem para nos ensinar.

Wittgenstein’s forgotten lesson

Wittgenstein: Filosofia e Ciência – Por Ray Monk #2

Na sua última obra, Wittgenstein abandonou a ideia de uma forma lógica e com a noção de “verdades inefáveis”. A diferença entre ciência e filosofia, ele agora acredita, se dá entre duas formas de compreensão: a teórica e a não teórica. Ou entre a teorética e a não teorética. A compreensão científica é fornecida através da construção e teste de hipóteses e de teorias, a compreensão filosófica, por outro lado, é resolutamente não teórica. O que buscamos na filosofia é a “compreensão que consiste em ver as conexões”.
A compreensão não teórica é o tipo de compreensão que obtemos quando dizemos que compreendemos um poema, uma peça musical, uma pessoa ou mesmo uma sentença. Tome-se o caso de uma criança que aprende sua linguagem nativa. Quando ela começa a compreender o que é dito a ela, isto se deve ao fato de ela ter formulado uma teoria? Podemos responder afirmativamente a esta questão – e muitos linguistas e psicólogos disseram exatamente isto – se desejamos, mas é uma maneira enganadora de descrever o que ocorre à criança. O critério que usamos para dizer que uma criança compreendeu o que foi dito a ela é se ela se comporta apropriadamente – ela mostra que compreendeu adequadamente a ordem “coloque este pedaço de papel no lixo” ao obedecer a instrução.
Outro exemplo preferido de Wittgenstein é o caso de compreensão de uma peça musical. Assim, como alguém demonstra que compreendeu uma peça musical? Bem, talvez ao tocá-la de maneira expressiva, ou por descrevê-la através de metáforas adequadas. E como se explica o que significa “tocar de maneira expressiva”? O que é necessário, diz Wittgenstein, é uma “cultura”: “se alguém chega à maturidade numa cultura particular – e antão reage à música de tal-e-tal maneira – você pode ensinar-lhe o uso da frase “tocar de maneira expressiva”. O que se requer para este tipo de compreensão é uma forma de vida, ou seja: um conjunto de prática comunal compartilhado, juntamente com a habilidade de ouvir e ver as conexões feitas pelos praticantes desta forma de vida.
O que é válido para a música é também válido para a linguagem ordinária “compreender uma sentença” diz Wittgenstein nas Investigações Filosóficas, “é mais como compreender um tema musical do que se possa imaginar”. Compreender uma sentença, da mesma forma, requer a participação na forma de vida, o “jogo de linguagem” ao qual ela pertence. A razão pela qual os computadores não possuem compreensão das sentenças que eles processam não é por lhes faltar uma suficiente complexidade neuronal, mas sim por que eles não são e nem poderão ser, parte da cultura que a sentença pertence. Uma sentença não adquire significado através da correlação, um por um, entre suas palavras e os objetos do mundo, antes, ela adquire significado através do uso que se faz dela na vida comunal dos seres humanos.
Tudo sito pode soar como uma verdade trivial. O próprio Wittgenstein descreve seu trabalho como uma “sinopse de trivialidades”. Contudo, quando estamos pensando filosoficamente rapidamente esquecemos estas trivialidades e nos vemos em confusões, imaginando, por exemplo, que poderemos nos compreender melhor a nós próprios se estudamos o comportamento quântico de partículas subatômicas dentro de nossos cérebros, uma crença análoga à convicção de que o estudo da acústica irá nos ajudar à compreender melhor a obra de Beethoven. Por qual razão é necessário relembramos destas trivialidades? Porque somos enfeitiçados pelo pensamento de que se nos faltar uma teoria científica de alguma coisa, nos faltará a compreensão da mesma.
Uma das diferenças cruciais entre o método da ciência e a compreensão não teórica que é exemplificada através da compreensão da peça musical, arte, filosofia e vida ordinária, é que a ciência investiga num nível de generalidade que necessariamente esquiva-se destas outras formas de compreensão. É por tal razão que uma pessoa compreender-se a si mesma jamais será uma ciência. Compreender uma pessoa é ser capaz de dizer, por exemplo, se a pessoa quer significar o que disse ou não, se suas expressões de sentimento são genuínas ou fingimentos. E como se adquire este tipo de compreensão? Wittgenstein levanta esta questão no final das Investigações Filosóficas. Existe, ele pergunta um julgamento especializado sobre a genuína expressão de sentimentos? Sim, ele responde, existe.

Wittgenstein: Filosofia e Ciência – Por Ray Monk #1

A Lição esquecida de Wittgenstein
Ray Monk, Professor de Filosofia na Universidade de Southampton, UK.
July 20, 199
A filosofia de Ludwig Wittgenstein é estranha ao Cientismo que domina nosso tempo. O Filósofo Ray Monk explica por qual razão o pensamento de Wittgenstein ainda é relevante.
Ludwig Wittgenstein é considerado por muitos, e eu me incluo entre estes, como o maior filósofo deste século. Suas duas grandes obras Tractatus Logico-Philosophicus (1921) e as Investigações Filosóficas (1953) exercem muita influência nos desenvolvimentos subsequentes da filosofia, especialmente na tradição analítica. Sua personalidade carismática fascina artistas, teatrólogos, poetas e novelistas, músicos e cineastas, de tal forma que sua fama se espalhou para além dos limites da academia.
Mesmo assim, em certo sentido, o pensamento de Wittgenstein tem causado pouca impressão na vida intelectual deste século. Tal como ele mesmo havia percebido, seu estilo de pensamento é estranho ao estilo de filosofia que predomina em nossa era atual. Sua obra se opõe como ele mesmo disse, ao “espírito que predomina no rumo da civilização Europeia e Americana na qual todos nós nos incluímos”. Após quase aproximadamente 50 anos de sua morte podemos ver mais claramente do que nunca que o sentimento expresso por ele de que estava nadando contra a corrente da época, era justificado. Se desejarmos dar um nome que descreva esta “corrente”, podemos chamá-la por “Cientismo” (scientism), qual seja: a visão de que toda questão inteligível possui, ou uma solução científica, ou não possui solução nenhuma. É contra esta visão que Wittgenstein se via.
O Cientismo toma várias formas. Nas humanidades toma a forma da pretensão de que a filosofia, literatura, história, música e as artes podem ser estudadas como se fossem ciências com “pesquisadores” aplicados em apresentar suas “metodologias”. Tal pretensão tem produzido uma grande quantidade de péssima produção escrita, caracterizada por uma teorização vazia, especializações espúrias e o desenvolvimento de vocabulários pseudo técnicos. Wittgenstein teria olhado para estes resultados e chorado (wept).
Existem muitas questões para as quais não temos respostas científicas e não por serem questões profundas, mistérios impenetráveis, mas simplesmente pelo fato de que não são questões científicas. Entre estas podemos citar questões sobre o amor, a arte, a história, cultura, música. Todas estas questões, de fato, que se relacionam com a tentativa de nos compreendermos melhor. Existe um sentimento espalhado pela sociedade d que o escândalo de que nos falta uma teoria da consciência e, da mesma forma, existe um grande esforço interdisciplinar que envolve médicos, cientistas da computação, psicólogos cognitivos e filósofos para se encontrar respostas científicas para as questões: o que é a consciência? O que vem a ser o “si mesmo” de uma pessoa? Um dos primeiros competidores deste campo tão povoado é a teoria lançada pelo matemático Roger Penrose de que a consciência é um campo composto por uma sequência orquestrada de eventos quânticos físicos que ocorrem no cérebro. A teoria de Penrose é de que um momento de consciência é produzido por uma sub-proteína chamada “tubulina”. Segundo o próprio Penrose sua teoria é “especulativa” e, para muitos, tal teoria é uma bizarrice implausível. Mas, suponha que descubramos que a teoria de Penrose estava correta, com tal resultado entenderíamos melhor quem nós somos? Ou entenderíamos melhor a nós mesmos? Uma teoria científica é o único tipo de entendimento?
Bem, você pode perguntar que outro tipo existe? A resposta de Wittgenstein a esta questão é, segundo meu ponto de vista, seu maior e mais negligenciado contributo. Ainda que Wittgenstein tenha mudado seu pensamento entre sua primeira e segunda obra, sua oposição ao Cientismo foi constante. A filosofia, ele escreveu, “não é uma teoria, mas uma atividade”. Ela é conseguida não após uma verdade científica, mas sim após a clareza conceitual. No Tractatus esta clareza é obtida através da correta compreensão da forma lógica de nossa linguagem a qual, uma vez obtida, está destinada a permanecer inexprimível. Coisa que levou Wittgenstein a comparar suas próprias proposições filosóficas a uma escada a qual deve ser jogada fora uma vez que tenha sido usada, depois de subirmos através dela.

Peter Hacker – Desafio à Autonomia da Filosofia – 3

Parte Final.

Verdades conceituais não matemáticas e não lógicas (i. é, verdades gramaticais) são igualmente a priori. Distinguir estas de verdades a posteriori não depende de uma distinção Carnapiana (ou de qualquer outra) entre proposições analíticas e sintéticas. Depende de uma distinção entre enunciados implícitos para o uso de palavras e aplicação de palavras de acordo com as regras assim enunciadas. Que raposos são raposas (o que é analítico, i. é, transformável numa verdade lógica pela substituição por sinonímia definitória), que vermelho é mais semelhante a laranja que amarelo (o que não é uma verdade analítica nesta acepção), que uma pessoa é um sujeito de direitos e deveres, que ter uma mente é ter um certo conjunto de habilidades, são especificações da natureza de seus temas e simultaneamente expressões de regras para o uso de seus termos constituintes. Estas autorizam descrições alternativas dos fenômenos e inferências a partir de suas descrições.

Verdades analíticas como “raposos são raposas” ou “solteiros são não casados” são uma subclasse das verdades conceituais. Foi um erro de Carnap e do Positivismo Lógico caracterizar tais verdades como verdadeiras em virtude de convenções, e alegar que a verdade delas segue o significado dos termos e das leis apenas da lógica. Elas não decorrem apenas dos significados de seus termos constituintes (nada decorre de uma palavra, mas apenas de uma proposição), mas são parcialmente constitutivas do significado destes termos. Assim, seria mais correto caracterizá-las como convenções, como expressões de regras para o uso de suas palavras constituintes sob a aparência ilusória de descrições. [pg. 33]. Naturalmente, dizer que tais proposições são verdadeiras, não é dizer que as regras que elas expressam sejam verdadeiras – pois não há tal coisa como regras verdadeiras ou falsas. É meramente confirmar seus papéis como expressões de regras. Semelhantemente, dizemos que a proposição “o rei do xadrez move-se uma casa de cada vez” expressa uma regra do xadrez e também dizemos que o rei do xadrez move-se uma casa de cada vez. Expressar este último dito é meramente afirmar que esta é uma regra do xadrez para o movimento daquela peça. Para uma proposição empírica ser verdadeira, cabe às coisas serem tais como ela diz que são. Mas, para uma proposição gramatical ser verdadeira (pouco importa se analítica, como “raposos são raposas”, ou não analítica, como “vermelho é mais escuro que rosa”), cabe à própria proposição expressar uma regra constitutiva do uso de seus termos constituintes. Uma proposição empírica falsa é compreensível: ela descreve um estado de coisas possível que de fato não ocorre. O que chamamos uma “falsa” proposição gramatical (por exemplo que rosa é mais escuro que vermelho) não descreve uma possibilidade que casualmente não ocorre. Ela nada descreve. Nem enuncia uma regra falsa de uso dos seus termos constituintes, uma vez que regras não são verdadeiras ou falsas. De fato, ela conjuga palavras de uma maneira adversa às regras de seus usos. Assim, pode-se dizer que é uma forma peculiar de nonsense. As regras para o uso de palavras não são imunes, naturalmente, a uma revisão. Mas se as revisamos, então as palavras, cujo uso elas determinam, terão um significado diferente – isso é, serão usadas de uma maneira diferente. [fim do texto de Hacker]

Ou seja, se interpreto Hacker corretamente, a ameaça de Quine ao empreendimento filosófico é, na verdade, baseada numa confusão. Quine trata as proposições gramaticais como se fossem proposições empíricas. Mais ainda, sua crítica à distinção analítico/sintético “pode” ter sua validade apenas dentro do âmbito da filosofia – ou da distinção – elaborada por Carnap. Quine é um capítulo da filosofia e não uma nova definição do trabalho filosófico.

Peter Hacker – Desafio à Autonomia da Filosofia – 2

Continuando a argumentação Peter Hacker do post anterior.

[pg. 31] Mais ainda, a distinção entre verdades gramaticais e empíricas não é exaustiva, pois há uma classe de proposições variadas que constitui o pano de fundo herdado contra o qual distinguimos verdade de falsidade (por exemplo: “o mundo existe a muitos anos”, “Gatos não crescem em árvores”, “Meu nome é NN”) Tais proposições são empíricas – dizem respeito ao mundo e ao que há nele – , embora tenham um papel similar, sob certos aspectos, àquele das proposições gramaticais, uma vez que podem servir como regras para testar outras proposições. Elas não são auto-evidentes nem manifestas aos sentidos ou à razão, nem são inferidas de proposições que são assim; no entanto, não são apoiadas por nenhuma evidência que seja mais certa do que elas próprias. Elas se sustentam pelo que as cerca, como a pedra angular de um arco [Nota de Hacker: Wittgenstein caracterizou tais proposições como proposições da “imagem de mundo” de alguém; Veja-se On Certainty. Para uma discussão esclarecedora eja-se A.J.P. Kenny Faith and Reason].

Contrariamente à posição de Quine, verdades da lógica e da matemática não “enfrentam o tribunal da sensibilidade” para confirmação ou infirmação juntamente com as teorias científicas nas quais foram utilizadas. A verdade delas é estabelecida por demonstrações dedutivas, e a aceitação de uma demonstração é o mesmo que isolar a proposição em questão de fatos empíricos. Nenhum teorema lógico ou matemático se mostra falso pela rejeição da teoria empírica na qual é empregado. Nem a confirmação de tal teoria (por exemplo, a teoria da gravitação universal de Newton) torna mais certa a matemática que ela emprega (por exemplo, os teoremas do cálculo diferencial não se tornam mais certos pelo sucesso da física newtoniana) [suprimi aqui uma nota de Hacker]. De modo nenhum se julgará como demonstração que uma proposição aritmética comprovada é verdadeira apenas na maior parte dos casos, ou somente sob certas condições específicas. Mas isso, contra Quine, não é por que nós blindamos tais proposições mais que outras contra infirmações por considerações atinentes à simplicidade da teoria. Antes, um papel inteiramente diferente daquele das proposições empíricas é atribuído a tais proposições – elas são normativas, e não descritivas. O que mantemos rigidamente em face da experiência não é uma verdade do mundo, mas a expressão de uma regra – por exemplo, uma regra para transformar descrições de como as coisas são no mundo.

Peter Hacker – O Desafio à autonomia da Filosofia – 1

Em sua obra Human Nature: Categorial Framework (Blackwell, 2007 traduzido para o português pela Editora Artmed, 2010) Peter Hacker a certa altura do texto, depois de analisar o tema “Filosofia e Meras Palavras”, volta-se para um dos principais desafios à autonomia do empreendimento filosófico. Reproduzo aqui o texto de Hacker, pois concordo amplamente com seus argumentos e com o desafio, senão entrave, que ele aponta e cuja origem são os argumentos de Quine em sua crítica aos “Dois Dogmas do Empirismo”

Nas páginas anteriores Hacker argumentou que o empreendimento filosófico é uma investigação conceitual que busca a clareza sobre os conceitos que empregamos. Contudo, argumenta ele na seção seguinte (pgs. 30 – 33) que (passo a citar Hacker) “Na segunda metade do século XX, alguns filósofos americanos, liderados por Quine, argumentaram que não há distinção entre verdades conceituais e verdades empíricas (verdades de razão e verdades de fato), que as proposições nas quais acreditamos, normalmente concebidas conjuntivamente a fim de formar uma teoria, confrontam a realidade na busca de confirmação como uma totalidade. Todas e qualquer uma dentre as proposições de uma dada teoria, até mesmo aquelas que são concebidas (erroneamente, do ponto de vista de Quine) como sendo necessárias a priori, podem ser abandonadas a fim de ajustar a teoria como um todo aos resultados da experiência e de experimentos. Se isso fosse correto não haveria distinção categorial entre filosofia e ciência e a reflexão filosófica seria uma parte da construção geral de teorias concernentes ao mundo – como, de fato argumenta Quine. Assim, a reflexão filosófica sobre a natureza humana seria parte das ciências humanas, sujeita a sua jurisdição e confirmada ou infirmada com elas. No entanto, isso é incorreto.

A visão holística de Quine (Two Dogmas of Empiricism [tradução brasileira na Coleção Os Pensadores], 1953 reimpresso em From a Logical Point of View [tradução brasileira “De um ponto de vista Lógico] depende do repúdio da articulação de Carnap de uma distinção entre proposições analíticas e sintéticas (desconsiderando as construções de analiticidade de Kant, Bolzano e Frege). É certo que, a partir de suas reflexões sobre a sua própria distinção entre proposições analíticas e sintéticas, Carnap chegou à conclusão extraviada de que as verdades analíticas decorriam de convenções. Mas é discutível se sua distinção é irremediavelmente defeituosa, como argumenta Quine. A acusação de Quine foi contestada pelo próprio Carnap (“Quine on Analiticity” em R. Creath (Ed.) Dear Carnap, Dear Van, Berkeley,1990) e evitada com sucesso defensável por Grice e Strawson (“In Defense of a Dogma” in Philosophical Review, 65, 1956). Também é discutível se a possibilidade de rejeitar a distinção de Carnap entre proposições analíticas e proposições sintéticas implica a possibilidade de rejeitar as diferentes distinções traçadas por Kant, Bolzano e Frege. Mas, mais importante para o presente propósito [da análise de Hacker], a distinção entre verdades conceituais a priori e proposições empíricas a posteriori não depende da viabilidade de qualquer distinção entre proposições analíticas e sintéticas. Entre as verdades conceituais a priori devemos distinguir verdades da lógica e da matemática e distinguir ambas das verdades gramaticais gerais, pouco importando se essas são verdades analíticas (explicadas de maneira apropriada em termos lógicos) ou outras verdades gramaticais não analíticas, (por exemplo que vermelho é mais escuro que rosa, ou que nada pode ter simultaneamente apenas dois metros de comprimento e também três metros de comprimento). Deve ser evidente que a distinção entre verdades conceituais (inclusive gramaticais) e empíricas, ao contrário da distinção entre verdades a priori e a posteriori, não é epistêmica, ainda que verdades gramaticais conceituais sejam, obviamente, a priori. É uma distinção entre diferentes papéis e usos das proposições”.

O que são leituras filosóficas?

Para os que estão acostumados a ler textos de filosofia, ler um ensaio ou um livro de filosofia se parece muito com aprender (ou mesmo “apreender”) algo novo. Este “algo novo” podem ser argumentos, concepções ou visões sobre certos aspectos interessantes de nossa humanidade. Contudo, raramente lemos textos de filosofia como se fossem uma conversação entre quem escreveu o texto e quem o lê. Este deveria ser o motivo da leitura, não lemos textos de filosofia apenas por obrigatoriedade ou devido ao fato de que, no texto, algo deve ser aprendido, apreendido.

Um texto de filosofia é uma conversação, mesmo porque a filosofia só se dá (no sentido de acontecer) no diálogo.