Escrita e Filosofia

escrever

Normalmente a concepção que temos de filosofia é que ela é um diálogo, critica, análise, poderação e consideração de pontos de vista ou argumentos. Contudo, algumas destas concepções não consideram que a filosofia é eminentemente escrita. Por certo que a filosofia é uma análise e a consideração de pontos de vista e de argumentos. Mas isto não se dá numa conversação exclusivamente. Basta lembrar que nosso acesso aos filósofos se dá através dos textos dos mesmos. Nosso contato com Husserl, para citar um exemplo, é através do que Husserl escreveu o mesmo sendo válido para todos os filósofos. Ora sendo assim, são raras as oportunidades em que travamos um diálogo em que podemos distinguir as conlcusões e consequências dos argumentos que discutimos. Ao mesmo tempo, a ideia de “diálogo” não parece trazer consigo uma consequência importante do trabalho filosófico: não ter pressa, ser minucioso, ser detalhista. Mesmo que não seja por temperamento, que seja por cuidado com o que se está discutindo. Portanto, cuidado com a ideia de que a filosofia é um “diálogo”, muitas vezes ela esconde a falta de interesse em discutir um texto, ler um texto em aula e detalhar as minúcias da argumentação. Ora, como normalmente solicito ensaios curtos em minhas aulas, acredito que seja condizente que eu forneça algumas perorações sobre as relações entre a escrita e a filosofia. Claro, não viso a profundidade no tema, mas algumas sugestões e considerações oportunas. Ao mesmo tempo, gostaria de expôr alguns argumentos sobre a interação entre filosofia e escrita.

Uma consequência nefasta que a concepção de filosofia como “diálogo” traz consigo é que tal concepção esquece que a produção de um ensaio se dá na solidão. Isto é, quem deve escrever é a mesma pessoa que está lendo e isto, por sua vez, não parece lembrar um diálogo (ainda que possamos ter diálogos interiores, não parece ser esta a noção de diálogo expressa pela concepção de filosofia como diálogo). Logo, paradoxalmente, surge a ideia de que “fazer filosofia” é uma conversação “cara-a-cara”, preferencialmente num ambiente apropriado (para muitos o termo “apropriado” pode significar uma mesa de bar ou uma conversação entre várias pessoas). Entretanto, basta considerar que se você desejar escrever a conversação, irá enfrentar problemas de memória, etc. Ora, por certo que a filosofia é um diálogo. Mas não no sentido comum: ainda que escrevendo solitariamente, você está num diálogo. Seu diálogo agora é com o próprio texto, com a argumentação.

Assim que se estabelece o argumento, o tema do escrito, surge a dificuldade de desenvolvimento: por qual caminho seguir? Buscar ou não algum texto? Consultar ou não alguém (o professor de filosofia) para judar no desenvolvimento? Mas, o quê vem a ser desenvolver a argumentação ou o argumento? Neste momento, você está diante de algo que, por assim dizer, anda por si mesmo, possui desenvolvimento próprio. Será necessário pensar em cada passagem, oração, conceito do argumento. Será necessário, talvez, reescrevê-lo buscar torná-lo mais claro. Talvez, até, separar cada frase do argumento e ponderar sobre as mesmas. Esta ponderação é o que podemos chamar de análise. E aqui você está em uma conversação com as frases, com o significado das mesmas e deve tentar explicitar o que elas significam para o todo de que fazem parte. Ao mesmo tempo, é neste momento que você se verá frente à frente com uma questão moral, por assim dizer: você não pode fugir dos problemas que cada frase lhe apresenta, você não pode facilitar e buscar a rapidez e, também, você não pode malbaratar o argumento através de uma análise superficial.

Ou seja, é como se o tempo de ponderação fosse, não apenas o tempo que você emprega e dedica ao estudo do argumento, mas também um tempo em que você estará pensando nas minúcias da linguagem, nos significados, nos sentidos que as palavras lhe apresentam. Você estará numa conversação não com ideias ou representações, imagens (ainda que estas possam lhe ocorrer). Antes, você estará contemplando a linguagem. Como se, por algum tempo, você estivesse imerso nos meandros da própria significação e sentido das palavras. As concatenações e relações entre as palavras, suas justaposições e as expressões que formam, não lhe pertencem, elas pasam diante de seus olhos lhe sugerindo outras e mais outras concatenações. Estas, as que lhe forem mais significativas, devem ser escritas. Aqui você está num diálogo com a linguagem e este diálogo será tanto mais frutífero, quanto for sua capacidade de explorá-lo com o seu próprio vocabulário.

Considerando este tempo e a minúcia do desenvolvimento da escrita, me ficou claro por qual razão a Filosofia da Linguagem Ordinária, tal como a de John Langshaw Austin ou a de Gilbert Ryle, foi abandonada. Isto é, nos dias de hoje queremos a rapidez da conclusão que “voa” das premissas. Precisamos ser rápidos, céleres a apresentar todo o raciocínio no menor espaço de tempo possível. Isto pode ser uma arte, por assim dizer; muitas revistas de filosofia exigem ensaios muito curtos, onde apenas o essencial seja apresentado (é uma arte, pois deve-se ter um refinado critério para definir o que é essencial). Neste caso, as análises de Austin e Ryle e, ao mesmo tempo, as de Wittgenstein, se tornam cansativas, monótonas e repetitivas. Percebi isto ao retomar minha leitura dos ensaios de Austin e as considerações de Stanley Cavell sobre Austin e a linguagem oridinária, a arte e o romance. Infelizmente, não temos o tempo necessário e quando o temos, desperdiçamos com ruídos.

Você pode entender que estes “ruídos”, no seu texto, são as citações desnecessárias, as notas de rodapé que apenas visam demonstrar algum tipo de erudição, as remissões à datas, títulos de livros e de ensaios de outros autores. Isto faz com que a linha de raciocínio se perca, uma vez que você acrescenta detalhes que não contribuem para a conversação. Será assim que seu leitor “conversará” com seu texto. Ele, seu texto, será como aquela pessoa que, ao conversar conosco, acrescenta detalhes desnecessários ao “fio da conversação”. E você deve lembrar que seu texto será lido, alguém se dedicará a compreeendê-lo e julgará o que você escreveu como se estivesse numa conversação com o autor do texto. Você estará num diálogo em que, paradoxalmente, não estará presente, seu escrito é uma espécie de representante de sua pessoa. Quem ler seu escrito julgará o autor do mesmo e não apenas as palavras que você usou. Pode que julgue suas palavras, as concatenações que você apresentou. Neste momento, se você não buscou ser claro(a), se não dedicou atenção aos detalhes do que desenvolvia e se poupou o argumento de algum desenvolvimento, ocorrerá um julgamento. Neste caso, a pergunta será “que tipo de pessoa é este filósofo que escreve de forma complicada?”; ‘será ele o complicado ou eu (que leio) que não tenho alcance para o que está escrito?”. O resultado, não estará sob seu controle, uma vez que você perdeu o controle ou não desejou nem tê-lo, sobre seu escrito.

Hipóteses, Crenças, Certezas

aspirations_for_the_dyingA imagem ao lado completa o tema desta postagem. Em rede social alguém informa que o estudo financiado pela Fundação Templeton que buscava compreender a interação entre a “oração de cura” e a “cura” propriamente dita, mostrou que, antes pelo contrário a “oração de cura” não tem efeito algum. Infelizmente descobri que esta “pesquisa científica” não é de agora e sim data do ano de 2005, com resultados publicados no ano de 2006. Além disto os resultados foram favoráveis se considerarmos os que ficaram aguardando a “oração de cura” e não a receberam (receberam, isto sim, esperança de cura). Portanto, o tema da informação “a oração de cura não possui efeito algum” é ultrapassado. Ao mesmo tempo encontrei outro teste “científico” que visava o mesmo resultado, só que realizado em Moçambique (acessível aqui http://www.docvadis.es/jorge-cordero) com resultados bem diferentes. Não acredito neste tipo de investigação científica, que nada mais é que cientificismo. Parece que apenas compreenderemos o que é a “oração de cura” se a ciência e os testes experimentais nos fornecerem a definição. Não sei quanto foi investido na pesquisa sobre a oração de cura em Moçambique, a pesquisa da Fundação Templeton envolveu 2.5 milhões de dólares e arrecadou 2.3 milhões dos cofres públicos. Considerando que o financiamento da fundação pode ser descontado no Imposto de Renda, a Fundação ganhou 2.3 milhões do governo via incentivos de pesquisa.

Agora o que dizer do tema da pesquisa, isto é, não é uma pesquisa interessante? Não revelaria que a oração de cura é uma fraude? Bem, considero que fraude não é, mas também não é algo científico ou que se possa reduzir a termos científicos. Por certo que análises experimentais com sujeitos que se submeteram (será esta a palavra adequada?) a oração de cura, podem ser feitos. Os resultados podem ser tabulados e aferidos de forma experimental e com dados fisiológicos. Não importa, meu ponto é que a crença religiosa, e nisto se incluí a oração de cura, possui seus próprios métodos de obter resultados positivos. Tais métodos baseiam-se na crença de que os resultados positivos foram obtidos através da crença de que a oração de cura, produz cura e na descrença quanto aos resultados. Não é algo que se possa “aferir”, submeter à métodos experimentais. Claro, colocando a questão sob tal ponto de vista, posso dar a entender que creio que os pastores milagreiros estão certos e os resultados negativos (óbito do paciente, retorno da doença, etc) se deve ao paciente e à fé do mesmo. Ora, considero que resultados positivos são raros e que as pessoas que assistem ao que os pastores milagreiros fazem, crêem que estão presenciando uma tentativa de cura, tanto quanto os que acreditam no pastor milagreiro. Ou seja, mutatis mutandis, são tão ingênuos quanto os crentes. Ainda assim, devemos separar a crença religiosa quanto à oração de cura e a cura em si.

O problema está em afirmar que a oração de cura é igual ou funciona da mesma forma que a cura na medicina experimental. Se esta não for a crença de base, então não seria aceita a pesquisa experimental. Não creio que a oração de cura possa ser avaliada sob tal ponto de vista (ademais, bastante estreito). Apenas quem presencia uma oração de cura, assistida por um sacerdote, conseguirá entender por qual razão se pode crer na mesma. Este é o ponto. A crença religiosa não é compreendida por aqueles que creem apenas nos e com os métodos experimentais. Para usar uma expressão de Thomas Khun (fora do contexto aqui, é claro) as duas crenças são incomensuráveis. Os aspectos positivos da crença religiosa são vistos na forma de vida da pessoa que a sustenta e não em proposições verdadeiras cujo fundamento é a crença religiosa. A verdade da crença se dá na forma como esta crença atua na vida das pessoas e não nos resultados teóricos da crença. Sob tal ponto de vista, a teologia natural é uma completa racionalização da forma como nutrimos nossas crenças religiosas. Os resultados da pesquisa da Fundação Templeton poderiam ser diferentes e favoráveis à oração de cura. Isto em nada mudaria o caráter da oração de cura, isto é, que as pessoas que possuem crença religiosa ainda irão aceitar  a mesma, apesar dos resultados experimentais.

Lembro, a este respeito, de uma passagem descrita por Wittgenstein e presenciada por ele no front de batalha da Primeira Guerra Mundial: alguém (um sacerdote talvez) apresentava a bandeira do Divino Espirito Santo aos soldados para que a beijassem antes de enfrentar as balas do inimigos. Lembremos que as batalhas de trincheira durante a Primeira Grande Guerra consumiram milhares de vidas. Ora, um General vendo o gesto indignou-se com a crença dos soldados e se pronunciou afirmando que algum dia a ignorância iria acabar, pois a bandeira não protegia ninguém das balas inimigas. Por certo, comenta Wittgenstein, que este General nada entendeu. Os soldados não estavam apenas solicitando ao Divino Espírito Santo que desviasse as balas para longe deles, eles estavam manifestando sua Fé, estavam acertando as contas – por assim dizer – com suas crenças religiosas, solicitando salvação de suas almas e sendo humildes quanto a situação. Por certo que muitos morreriam, mas não morreriam em vão tal como o General e suas racionalizações descabidas. A crença dos soldados os fazia enfrentar a situação difícil e perigosa, tanto quanto a certeza do General em acasos das leis da natureza (sim, ele não seria atingido se, por leis físicas, as balas não viessem em sua direção) o fazia enfrentar as batalhas. Contudo, se por acaso um soldado fosse atingido ele diria (se pudesse, é claro) que sua hora havia chegado, que Deus o chamava para livrá-lo daquele inferno, que sua vida iria para junto de Deus. Já o general (se pudesse falar, é claro), apenas poderia dizer “de fato, as leis da física explicam o que está ocorrendo com minha fisiologia e as balas atiradas em minha direção não sofreram variações e, portanto, atingiram o alvo, como era de esperar”.

A crença religiosa nos sustenta, na vida e na morte ou no morrer. As leis experimentais apenas explicam que vamos morrer, que estamos morrendo, mas em nada nos ajudam a aceitar que estamos morrendo e que tal morte tem algum sentido, ainda que seja complicado dizer qual seja o mesmo.