Se tornou comum no meio acadêmico da filosofia, escutarmos dois tipos de afirmações:

(1) estou cansado de trabalhar apenas com a exegese deste ou desta filosofa e desejo trabalhar com algo mais criativo, ou

(2) fazer filosofia é muito mais que citar ou explicar passagens de textos dos, considerados, grandes filósofos. A filosofia é muito mais que um trabalho de exegese de textos do passado. Não podemos fazer filosofia apenas explicando textos.

Ambos argumentos me parecem se originar de profundas incompreensões, não apenas pelo que afirmam, mas também pelo que supõem. Considerando que a pessoa que é capaz de elaborar tais afirmações deve saber o que diz, então deve-se considerar que já é alguém que possui estudos acadêmicos de filosofia. Isto é, já deve ter uma cultura filosófica, suficientemente formada, para saber usar as expressões “exegese”, “grandes filósofos”, “explicar a passagem em um texto”, “fazer filosofia”. Ao mesmo tempo, se o que estas expressões significam, não é o que a pessoa deseja continuar fazendo, então ela deve estar supondo que a filosofia pode ser feita – seja lá que sentido tenha esta palavra neste contexto – sem recorrer aos textos dos filósofos e sem exegese. Ao mesmo tempo, a afirmação (1) considera que é compreensível “cansar de trabalhar com este ou aquela filosofa” e este cansaço diz respeito aos argumentos do filósofo ou filosofa em questão. Ou seja, é como se a pessoa estivesse a queixar-se de não quer mais ler o mesmo texto.

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Considero que o pressuposto, tanto de (1) quanto de (2) é o mesmo, ainda que o conteúdo, por assim dizer, de cada um seja diferente. O que predomina nos dois ponto de vista é que “fazer filosofia” pode ser descrito pela palavra “fazer” e, mais ainda, que este “fazer” é tomado literalmente, isto é, existe um resultado no fazer filosófico e este resultado é o que está ausente na exegese de textos ou na explicação de argumentos e passagens de algum filósofo ou filosofa. Portanto, assim como posso me cansar de fazer sempre o mesmo trabalho ou tarefa, e isto, por sua vez, traz a repetição e a monotonia, também posso me cansar de trabalhar sempre com o mesmo texto, os mesmo argumentos e não obter prazer algum com isto.

Ainda, e dentro desta mesma queixa de cansaço, explicar uma passagem da Crítica da Razão Pura de Imanuel kant, é fazer um trabalho interno à própria obra ou a filosofia de Kant (considerando qual passagem se está tentando elucidar). Este trabalho interno seria válido apenas enquanto tal e seu resultado é relevante apenas enquanto limitado aos estudos da filosofia de Kant. Portanto, apesar de se poder apontar um resultado concreto como fruto desta tarefa, o mesmo não é a filosofia. Esta, concebemos, é algo diferente disto e não consiste numa tarefa interna a qualquer ponto de vista filosófico. Com isto, e pretendo desenvolver mais adiante este ponto, ficamos no aguardo de uma indicação quanto ao que seja a “tarefa filosófica” uma vez que apenas se apontou o que ela não é.

Este raciocínio conta ainda com o emprego de uma palavra que traz conotações negativas ou, se não isto, ao menos não traz conotações interessante e, justamente por isto é empregada. A expressão “exegese” tal como é usada, pode ser definida como uma tarefa de explicar uma frase, texto, passagem, da obra de filosofia. A tarefa típica que os argumentos (1) e (2) consideram que é tradicionalmente feita na academia de filosofia, consiste em separar uma determinada expressão do texto do filósofo (uma expressão que se torna estranha, pois não se definiu ainda o que é fazer filosofia, para afirmar que alguém realiza isto ou não) ou uma passagem específica e explicá-la. Este termo é usado comumente nos estudos Bíblicos. Ao mesmo tempo, o termo pode significar também, “interpretação critica” ou “análise” de uma passagem do texto. Assim, portanto, quando na academia explicamos qual a relação da palavra “desvendar” usada por Wittgenstein na seção 90 das Investigações Filosóficas com a discussão do argumento da linguagem privada (para o momento digamos que existe tal argumento no texto), não estamos fazendo exegese ou interpretando o texto. Estamos fazendo uma análise crítica e, como se diria em Grego, “hêgesthai” o que significaria que estamos “indicando” ou “guiando” a compreensão quanto ao texto e não apenas quanto aquela expressão.

Bem, por mais que a análise critica tenha seu valor e que “indicar” o caminho de compreensão em um texto ou sobre um texto, tenha seu valor e apresente um resultado, isto é, seria um “fazer”, ainda não seria definitório do que as afirmações (1) e (2) consideram que seria “fazer filosofia”. Ao contrário, isto seria exatamente o que aqueles argumentos consideram como “não” sendo “fazer filosofia” e como aquele trabalho que não é criativo. Ora, quanto a esta busca por criatividade e não repetição na filosofia, se parece muito com a busca por “inventar algo novo” na ciência. Isto é, tudo se passa como se o cientista estivesse cansado com sua tarefa monótona e repetitiva e abandona o trabalho. Ele passaria a não repetir, não mais conferir e testar o que já domina, enquanto teoria, e passaria a “criar”. Talvez não seja adequado comparar o “fazer filosofia” com a tarefa do cientista, talvez seria melhor comparar com a tarefa do artista, músico ou pintor. Neste caso, o pintor não mais quer repetir o mesmo estilo, as mesmas tonalidades de uma dada escola de pintura (seria interessante ouvir de um pintor “estou exausto de ser pontilhista!”). Ele busca ter prazer com que o faz e resolve ser criativo, novas tonalidades, novos motivos, novas intenções (não mais a arte pela arte, mas a arte engajada ou a arte conceitual). O resultado disto, consideramos, será uma pintura. Mas, ainda que alguns possam objetar que os novos tons, motivos e intenções se tornem algo “novo”, ele apenas o será se o que nega já for entendido. Assim, se não sei apreciar obras de pintura clássica não saberei apreciar outros tipos de obras diferentes destas. Eu não as entenderei. E isto poderia ser dito do caso do cientista “criativo”, isto é, ele é criativo em relação ao quê? Ele se tornou um pesquisador inventivo e inovador em comparação com o quê? Sua própria invenção? Poderia este cientista dizer “fazer ciência não consiste em repetir experiências que vários outros realizaram” ou “estou cansado de observar estes mesmos vírus, isto já não me traz prazer. Vou buscar outros objetos de observação”, Isto que fazemos nos laboratórios não é fazer ciência”. Ora, não creio nisto, uma vez que não me parece que “fazer filosofia” seja uma tarefa análoga a qualquer tarefa na ciência ou no que se entende como sendo a tarefa de um cientista. Contudo, é exatamente esta possibilidade que o filósofo acadêmico entediado com seus estudos supõe. Na analogia com o caso do artista, seria como dizer “cansei de ser um pontilhista, preciso de algo novo”. Mas neste caso, o novo não poderia ser outra escola de pintura e sim, algo que nem este artista entediado poderia explicar.

Acredito que a mudança na investigação filosófica consista em mudar a forma de abordar um tema ou argumento e não em inventar um tema ou argumento, ainda que isto tenha de fato acontecido na história da filosofia. Podemos tomar como exemplo, quanto a isto, o trabalho de Donald Davidson que retomou uma determinada tradição no estudo e compreensão da ação humana. Já havia uma maneira de compreender filosoficamente a ação humana que era preponderante na época de Davidson. Ele considerou que, pensar diferentemente desta maneira preponderante, poderia trazer mais clareza ao tema. Mas o que Davidson realizou não foi uma invenção e, igualmente, não trouxe uma forma diferente de considerar a ação humana pois isto seria uma novidade para seu tédio. Diferente disto, Davidson acreditou que havia uma maneira melhor de abordar o tema, isto é, a abordagem do tema pode mudar, mas o tema permanece sendo o mesmo e outras consequências interessantes surgiram. Seja como for, a “tarefa” de Davidson não foi a tarefa do cientista criativo.

Portanto, quanto a afirmação (1) a questão de mudar de tema, na verdade implica, para não ser leviandade, mudar a forma de considerar um determinado tema. Por exemplo a relação entre Lei e Valores Morais sob o ponto de vista do Positivismo ou do Jusnaturalismo. 

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