Quanto à segunda afirmação, a saber: na academia de filosofia fazemos apenas exegese de textos de filosofia. Já se comentou algo na postagem anterior sobre esta noção equivocada do que seja fazer exegese. A ideia que predomina em muitos filósofos acadêmicos é a de que a exegese consiste numa mera repetição e esclarecimento de passagens de textos clássicos ou considerados clássicos na filosofia. Seria como dizer, “faça o que fizer, você sempre estará repetindo algum texto” ou “sua tarefa será sempre explicar um texto ou argumento de um texto”. Existe aqui uma concepção equivocada do que seja “repetição”, “exegese” e para qual fim estas palavras são empregadas.

Contudo, esta queixa, por assim dizer, se volta para o vazio. Isto devido ao fato de que concebe que é possível algo como um “fazer filosofia”, sem acessar os textos dos filósofos. Fazer filosofia, sob este ponto de vista, seria como “ter insights filosóficos” e, obviamente, também crê que para ter estes insights pouco importa a filosofia, obras de filosofia. Seria como “ser possuído” pela filosofia, “incorporá-la” sem que ainda se saiba o que a mesma é ou em que consiste fazer filosofia. Pior ainda, a maneira de ensinar pessoas a “fazer filosofia” teria de ser, obrigatoriamente, ensinar a “ter insights”, ser inovador, etc. Poderíamos denominar isto por “animismo” com a palavra filosofia. Algo que, em nada, se pode chamar por “fazer filosofia”. Na verdade a queixa da afirmação (2) se confunde com “erudição”, mas aqui com um sentido negativo de acúmulo de informações obre um tema. Mas, por sua vez, isto também não consiste em uma acusação grave. A palavra “erudição” traz consigo uma imagem e esta imagem é equivocada. A erudição na verdade significa que se obteve conhecimento aprofundado de determinados fatos e concepções e suas conexões com outros campos do saber ou outras obras da cultura. Logo, uma pessoa que faz filosofia pode, de fato, ser um erudito em um tema ou vários. Isto, por sua vez, nada implica de negativo para a filosofia. Certamente que o pano de fundo neste caso é uma relação equivocada entre “especialista” e “erudito”.

Retornemos ao pano de fundo da afirmação (2) e sua queixa de que a filosofia acadêmica é mera repetição. Na verdade a ideia que permite esta queixa é a de que nos estudos acadêmicos de filosofia não há lugar para inovação e para a criatividade. Ou seja, a criatividade deveria ser a orientação para toda pessoa que estuda filosofia e não a repetição e exegese de textos. Contudo, a palavra criatividade não tem significado sem que um contexto lhe seja dado. Em que sentido se pode atribuir criatividade a uma pessoa? Talvez por ela resolver problemas com poucos recursos; talvez, por ela resolver corretamente problemas, apesar de ter muitos recursos. Contudo, a criatividade de uma pessoa na filosofia, se mostra na consideração de um tema específico a partir de um ponto de vista que ainda não foi amplamente desenvolvido, ou quanto às consequências de um tema já desenvolvido. Não se pode afirmar tacitamente que “fazer filosofia” é ser criativo. O mesmo se poderia dizer de alguém que inicie seus estudos em pintura ou música, isto é, deveríamos ensinar esta pessoa a ser criativa, inovar, mas não lhe ensinaríamos pintura e, sendo assim, ela poderia crer que o que quer que ela pintasse seria aceitável.

doubts

Ora, na filosofia não estamos sós. Temos pessoas que escreveram textos, os quais possuem diferentes graus de dificuldade e que tratam de forma diferente os mesmo temas. Será portanto necessário saber distinguir quais as consequências desta ou daquela consideração sobre um tema. Para tanto se deve ler e compreender os textos daqueles que já escreveram sobre o tema e, nesta tarefa, não se pode malbaratar o texto do autor e, portanto, é necessário compreender o texto. Mas, por outro lado, isto não significa fazer exegese e nem implica repetição de um texto, ainda que a repetição possa ocorrer (algumas pessoas preferem repetir e ter segurança e não especular de forma selvagem sobre um tema). Notadamente, a queixa da afirmação (2) engana-se ao não perceber que a filosofia está entremeada de diálogo e discussão de temas. Estes temas já são conhecidos e a frustração ocorre quando não se consegue superar o argumento do filósofo em questão. Contudo, isto ainda não esclarece em que consiste “fazer filosofia”, pois se espera uma indicação segura e definitória. Entretanto, é exatamente isto que não temos, pois a filosofia não consiste em um tema, obra, autor ainda que estes façam parte da filosofia. E nem, tampouco, em ser “criativo” ou inovador. O problema está na exigência de uma definição, de uma indicação. Como se, sem tal indicação, nada se faz. Seria dizer “se não me ensinam a operar a máquina, como saberei operá-la?”. Mas esta é uma visão equivocada.

Entretanto, fazer filosofia é adquirir sensibilidade para determinadas considerações. Por exemplo, para todas as pessoas, apenas morremos, nosso corpo se desfaz como qualquer material orgânico. Contudo, para quem tem a sensibilidade, filosófica, para a morte a pergunta será “o que significa isto?”, “que implicações tem a morte para a vida?”. O mesmo se pode dizer da pessoa que possui sensibilidade para as ações políticas: ela não aceitará tomar atitudes que violem ou intimidem outras pessoas, pois este é o problema em tomar uma ação política. Se não for desta forma, então é apenas a tentativa de impôr e dominar outras pessoas; ignorar que a história tem papel importante para nossas ações. Mas isto depende de sensibilidade, coisa que em nossa época de romantismo exacerbado, se torna uma opção sem importância. Portanto, saber “fazer filosofia” depende, de forma bastante circular, de ter sensibilidade filosófica e esta, dito de forma rudimentar, é crer que é importante considerar que temas e argumentos são relevantes devido às suas consequências filosóficas e não por que sabemos dominá-los e sabermos como se constrói argumentos a partir deles.

Ao fim e ao cabo, a afirmação (2) é a queixa de uma ausência de positividade, isto é, ausência de um resultado que seja “produto”. Seria dizer: aqui se faz filosofia e eis aqui o resultado, enquanto se aponta para algo. Mas não há para o que apontar, a não ser notas e escritos. Logo, a conclusão é: não se faz nada que não seja repetir, repetir, anotar e assim por diante. Entretanto, se poderia dizer que “fazer filosofia” seria como que considerar um argumento, tema ou situação de vida levando em conta que alguém mais já pensou sobre o mesmo. Se, nesta tarefa, alguém crê que a forma como aquele argumento ou tema é a que apresenta melhores consequências para o mesmo, por certo, que buscará compreender aquela forma de pensar ou considerar e irá ler os textos. Mas, isto por sua vez, não é o que se pode chamar por fazer filosofia e sim, um aspecto da tarefa. Ao mesmo tempo, a academia de filosofia necessita compulsar, anotar, escrever e considerar temas já pensados, pois esta é a forma pela qual alguém que tenha sensibilidade para argumentos, temas e escritos poderá desenvolver suas considerações. Portanto, não se trata de ter criatividade e sim de ter sensibilidade. Mas isto, é algo que não se ensina e as pessoas que passam anos considerando problemas, argumentos e temas com os quais não tem envolvimento, certamente reclamarão que a academia apenas repete, não incentiva a criatividade e causa tédio. As obras dos filósofos não fazem sentido para estas pessoas e, portanto, lhes surgirá a pergunta “por qual razão ler este texto e não aquele outro?”, “quem explica por qual razão N e X são considerados grandes filósofos e P, Q e T não o são?”. Ou seja, esta pessoa, entediada e sem criatividade alguma, não entende com o que está lidando, por assim dizer. O que lhe falta é a sensibilidade para diferentes considerações possíveis, justamente, por tal razão, perguntará “em que consiste fazer filosofia?” e todas as respostas irão incluir exemplos de textos de filosofia. Uma resposta que ela considerará circular e repetitiva.

Por fim, isto também explica aqueles filósofos (que abandonaram a filosofia), intelectuais que acreditam no ensino de filosofia, como o ensino de textos de filosofia. Terão de pensar “quais textos serão os mais indicados para…?”, que textos ela ou ele deverá incutir em seus alunos. Uma vez que a filosofia é uma tarefa de saber o que pensou este, esta ou aquela filosofa para um determinado fim que se crê ser o desejado. O tema da liberdade exige que se leia este ou aquele auto. O tema do sentido da existência exige que se leia este, esta e aquela. Mas o trabalho começa e termina no texto, na consideração do filósofo. Entretanto, a filosofia deveria ser um despertar da sensibilidade para determinados temas e considerações e ocorre que apenas a leitura e consideração não desperta a sensibilidade; tenta dizer, aquilo que apenas se pode mostrar através dos textos para pessoas que possuem a tendência e espírito (para usar uma palavra estranha) já sensível para o que se vai tratar. Portanto, a filosofia pode ser ensinada para aqueles que desejam a filosofia e não há como determinar em que momento, através de que experiência alguém deseja a filosofia. Tudo se torna uma grande frustração, pois nada se acrescenta e a grande descoberta será a de compreender, o que se desejava que fosse acrescido, qual era a falta que deveria ser suprida. Este nãos erá o trabalho com textos, temas e argumentos, ainda que nesta trajetória estes sejam importantes. Será um trabalho sobre a própria sensibilidade através dos textos, das anotações e explicações do texto de um filósofo. 

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