Peter Hacker – Desafio à Autonomia da Filosofia – 3

Parte Final.

Verdades conceituais não matemáticas e não lógicas (i. é, verdades gramaticais) são igualmente a priori. Distinguir estas de verdades a posteriori não depende de uma distinção Carnapiana (ou de qualquer outra) entre proposições analíticas e sintéticas. Depende de uma distinção entre enunciados implícitos para o uso de palavras e aplicação de palavras de acordo com as regras assim enunciadas. Que raposos são raposas (o que é analítico, i. é, transformável numa verdade lógica pela substituição por sinonímia definitória), que vermelho é mais semelhante a laranja que amarelo (o que não é uma verdade analítica nesta acepção), que uma pessoa é um sujeito de direitos e deveres, que ter uma mente é ter um certo conjunto de habilidades, são especificações da natureza de seus temas e simultaneamente expressões de regras para o uso de seus termos constituintes. Estas autorizam descrições alternativas dos fenômenos e inferências a partir de suas descrições.

Verdades analíticas como “raposos são raposas” ou “solteiros são não casados” são uma subclasse das verdades conceituais. Foi um erro de Carnap e do Positivismo Lógico caracterizar tais verdades como verdadeiras em virtude de convenções, e alegar que a verdade delas segue o significado dos termos e das leis apenas da lógica. Elas não decorrem apenas dos significados de seus termos constituintes (nada decorre de uma palavra, mas apenas de uma proposição), mas são parcialmente constitutivas do significado destes termos. Assim, seria mais correto caracterizá-las como convenções, como expressões de regras para o uso de suas palavras constituintes sob a aparência ilusória de descrições. [pg. 33]. Naturalmente, dizer que tais proposições são verdadeiras, não é dizer que as regras que elas expressam sejam verdadeiras – pois não há tal coisa como regras verdadeiras ou falsas. É meramente confirmar seus papéis como expressões de regras. Semelhantemente, dizemos que a proposição “o rei do xadrez move-se uma casa de cada vez” expressa uma regra do xadrez e também dizemos que o rei do xadrez move-se uma casa de cada vez. Expressar este último dito é meramente afirmar que esta é uma regra do xadrez para o movimento daquela peça. Para uma proposição empírica ser verdadeira, cabe às coisas serem tais como ela diz que são. Mas, para uma proposição gramatical ser verdadeira (pouco importa se analítica, como “raposos são raposas”, ou não analítica, como “vermelho é mais escuro que rosa”), cabe à própria proposição expressar uma regra constitutiva do uso de seus termos constituintes. Uma proposição empírica falsa é compreensível: ela descreve um estado de coisas possível que de fato não ocorre. O que chamamos uma “falsa” proposição gramatical (por exemplo que rosa é mais escuro que vermelho) não descreve uma possibilidade que casualmente não ocorre. Ela nada descreve. Nem enuncia uma regra falsa de uso dos seus termos constituintes, uma vez que regras não são verdadeiras ou falsas. De fato, ela conjuga palavras de uma maneira adversa às regras de seus usos. Assim, pode-se dizer que é uma forma peculiar de nonsense. As regras para o uso de palavras não são imunes, naturalmente, a uma revisão. Mas se as revisamos, então as palavras, cujo uso elas determinam, terão um significado diferente – isso é, serão usadas de uma maneira diferente. [fim do texto de Hacker]

Ou seja, se interpreto Hacker corretamente, a ameaça de Quine ao empreendimento filosófico é, na verdade, baseada numa confusão. Quine trata as proposições gramaticais como se fossem proposições empíricas. Mais ainda, sua crítica à distinção analítico/sintético “pode” ter sua validade apenas dentro do âmbito da filosofia – ou da distinção – elaborada por Carnap. Quine é um capítulo da filosofia e não uma nova definição do trabalho filosófico.

Peter Hacker – Desafio à Autonomia da Filosofia – 2

Continuando a argumentação Peter Hacker do post anterior.

[pg. 31] Mais ainda, a distinção entre verdades gramaticais e empíricas não é exaustiva, pois há uma classe de proposições variadas que constitui o pano de fundo herdado contra o qual distinguimos verdade de falsidade (por exemplo: “o mundo existe a muitos anos”, “Gatos não crescem em árvores”, “Meu nome é NN”) Tais proposições são empíricas – dizem respeito ao mundo e ao que há nele – , embora tenham um papel similar, sob certos aspectos, àquele das proposições gramaticais, uma vez que podem servir como regras para testar outras proposições. Elas não são auto-evidentes nem manifestas aos sentidos ou à razão, nem são inferidas de proposições que são assim; no entanto, não são apoiadas por nenhuma evidência que seja mais certa do que elas próprias. Elas se sustentam pelo que as cerca, como a pedra angular de um arco [Nota de Hacker: Wittgenstein caracterizou tais proposições como proposições da “imagem de mundo” de alguém; Veja-se On Certainty. Para uma discussão esclarecedora eja-se A.J.P. Kenny Faith and Reason].

Contrariamente à posição de Quine, verdades da lógica e da matemática não “enfrentam o tribunal da sensibilidade” para confirmação ou infirmação juntamente com as teorias científicas nas quais foram utilizadas. A verdade delas é estabelecida por demonstrações dedutivas, e a aceitação de uma demonstração é o mesmo que isolar a proposição em questão de fatos empíricos. Nenhum teorema lógico ou matemático se mostra falso pela rejeição da teoria empírica na qual é empregado. Nem a confirmação de tal teoria (por exemplo, a teoria da gravitação universal de Newton) torna mais certa a matemática que ela emprega (por exemplo, os teoremas do cálculo diferencial não se tornam mais certos pelo sucesso da física newtoniana) [suprimi aqui uma nota de Hacker]. De modo nenhum se julgará como demonstração que uma proposição aritmética comprovada é verdadeira apenas na maior parte dos casos, ou somente sob certas condições específicas. Mas isso, contra Quine, não é por que nós blindamos tais proposições mais que outras contra infirmações por considerações atinentes à simplicidade da teoria. Antes, um papel inteiramente diferente daquele das proposições empíricas é atribuído a tais proposições – elas são normativas, e não descritivas. O que mantemos rigidamente em face da experiência não é uma verdade do mundo, mas a expressão de uma regra – por exemplo, uma regra para transformar descrições de como as coisas são no mundo.

Peter Hacker – O Desafio à autonomia da Filosofia – 1

Em sua obra Human Nature: Categorial Framework (Blackwell, 2007 traduzido para o português pela Editora Artmed, 2010) Peter Hacker a certa altura do texto, depois de analisar o tema “Filosofia e Meras Palavras”, volta-se para um dos principais desafios à autonomia do empreendimento filosófico. Reproduzo aqui o texto de Hacker, pois concordo amplamente com seus argumentos e com o desafio, senão entrave, que ele aponta e cuja origem são os argumentos de Quine em sua crítica aos “Dois Dogmas do Empirismo”

Nas páginas anteriores Hacker argumentou que o empreendimento filosófico é uma investigação conceitual que busca a clareza sobre os conceitos que empregamos. Contudo, argumenta ele na seção seguinte (pgs. 30 – 33) que (passo a citar Hacker) “Na segunda metade do século XX, alguns filósofos americanos, liderados por Quine, argumentaram que não há distinção entre verdades conceituais e verdades empíricas (verdades de razão e verdades de fato), que as proposições nas quais acreditamos, normalmente concebidas conjuntivamente a fim de formar uma teoria, confrontam a realidade na busca de confirmação como uma totalidade. Todas e qualquer uma dentre as proposições de uma dada teoria, até mesmo aquelas que são concebidas (erroneamente, do ponto de vista de Quine) como sendo necessárias a priori, podem ser abandonadas a fim de ajustar a teoria como um todo aos resultados da experiência e de experimentos. Se isso fosse correto não haveria distinção categorial entre filosofia e ciência e a reflexão filosófica seria uma parte da construção geral de teorias concernentes ao mundo – como, de fato argumenta Quine. Assim, a reflexão filosófica sobre a natureza humana seria parte das ciências humanas, sujeita a sua jurisdição e confirmada ou infirmada com elas. No entanto, isso é incorreto.

A visão holística de Quine (Two Dogmas of Empiricism [tradução brasileira na Coleção Os Pensadores], 1953 reimpresso em From a Logical Point of View [tradução brasileira “De um ponto de vista Lógico] depende do repúdio da articulação de Carnap de uma distinção entre proposições analíticas e sintéticas (desconsiderando as construções de analiticidade de Kant, Bolzano e Frege). É certo que, a partir de suas reflexões sobre a sua própria distinção entre proposições analíticas e sintéticas, Carnap chegou à conclusão extraviada de que as verdades analíticas decorriam de convenções. Mas é discutível se sua distinção é irremediavelmente defeituosa, como argumenta Quine. A acusação de Quine foi contestada pelo próprio Carnap (“Quine on Analiticity” em R. Creath (Ed.) Dear Carnap, Dear Van, Berkeley,1990) e evitada com sucesso defensável por Grice e Strawson (“In Defense of a Dogma” in Philosophical Review, 65, 1956). Também é discutível se a possibilidade de rejeitar a distinção de Carnap entre proposições analíticas e proposições sintéticas implica a possibilidade de rejeitar as diferentes distinções traçadas por Kant, Bolzano e Frege. Mas, mais importante para o presente propósito [da análise de Hacker], a distinção entre verdades conceituais a priori e proposições empíricas a posteriori não depende da viabilidade de qualquer distinção entre proposições analíticas e sintéticas. Entre as verdades conceituais a priori devemos distinguir verdades da lógica e da matemática e distinguir ambas das verdades gramaticais gerais, pouco importando se essas são verdades analíticas (explicadas de maneira apropriada em termos lógicos) ou outras verdades gramaticais não analíticas, (por exemplo que vermelho é mais escuro que rosa, ou que nada pode ter simultaneamente apenas dois metros de comprimento e também três metros de comprimento). Deve ser evidente que a distinção entre verdades conceituais (inclusive gramaticais) e empíricas, ao contrário da distinção entre verdades a priori e a posteriori, não é epistêmica, ainda que verdades gramaticais conceituais sejam, obviamente, a priori. É uma distinção entre diferentes papéis e usos das proposições”.